Visões de Um Poema Sujo

Em meados dos anos 1930, a norte-americana Amelia Earhart sobrevoou o litoral maranhense e fez algumas imagens aéreas de São Luís. Mais de 70 anos depois, Márcio Vasconcelos fotografa essa mesma cidade, agora do chão. Vamos imaginar poeticamente que ele estava naquele avião e que desceu para ver de perto o que havia lá embaixo. O resultado desse olhar está aqui em Visões de um poema sujo.

Inspirado no Poema Sujo, livro de Ferreira Gullar escrito no exílio, em 1975, Vasconcelos dialoga com os versos do poeta, revendo e recriando a cidade natal do escritor, cenário desse livro que é um dos mais importantes da língua portuguesa da segunda metade do século 20.

Márcio Vasconcelos nasceu em São Luís e vem fotografando seus personagens e manifestações culturais há mais de 30 anos. Nesta exposição, seu olhar se debruça sobre as lembranças da infância de Gullar e a musicalidade de sua poesia em cenas do cotidiano da cidade, objetos e pessoas. Ele também faz o registro da geografia de São Luís, caminhando entre suas claridades e ventanias.

Há um relâmpago nos versos gullarianos, mesmo quando ele fala do lado obscuro da cidade, sua lama e podridão, seus mangues e obscenidades. O fotógrafo procura e desnuda essa sujeira luminosa, as faíscas desses versos que nos falam de um lugar ao norte do Brasil, à beira do Atlântico, vazado pelo rio Anil. E mais: lança uma nova luz sobre São Luís, focando a ternura por onde um menino chamado Zeca zanzou na infância e adolescência.

Márcio Vasconcelos lambe cores e sombras, portas, cadeiras, paredes, conversas, cheiros, cascas, cristaleiras, terra, água, barro, latas velhas, garfos, armários, muros, quitandas, quintais, entre formigas e rádios que dão notícia sobre a segunda guerra mundial. O lixo e o luxo que cercam e formam coisas da natureza e do homem, cruas e deslumbrantes por onde passaram outrora índios timbiras e voaram pássaros pássaros: os guerreiros continuam vivos.

A lente do fotógrafo registra uma outra cidade e a mesma. A do poeta, que viveu ali nos anos 30 e 40 do século 20; e a dele, Márcio, a São Luís de agora, ainda com sua exuberância e precariedade, águas e podridão a olhos nus. Dois olhares sobre um mesmo lugar molhado pela águas — salgadas da Baía de São Marcos e doces e escuras do rio Anil. Algo permanece eterno independentemente do tempo. Esse o milagre do fotógrafo: reencontrá-la e reinventá-la.